Vejo a vida como um filme. Uma mesma história pode dar origem a um drama ou uma comédia. Depende muito de como se usam os elementos para criar o guião.
O meu destino tinha tudo para dar errado. Abuso sexual em criança, incesto na juventude, mãe solteira aos 20 anos. A vida atira-me umas cartas que só apetece ‘Baralha melhor essa merda!’
Até aos 16 anos eu parecia ser uma menina-modelo. Tinha boas notas, fazia ballet, namorados de ‘boas famílias, portava-me ‘bem’. Bom… assinava pela mãe os avisos do liceu de quando era apanhada… Dois anos antes com o frasco de librium à frente optei por lutar. Mais que sobreviver.
A minha viagem à Suécia em 1966 foi transformadora. Percebi a fragilidade da Vida, com a cirurgia ao aneurisma cerebral da mãe. Aquela senhora que parecia uma flor tão frágil afinal tinha tanto medo de morrer. Viveu até aos 105 anos. Saboreei pela primeira vez o prazer de viver em Liberdade. De falar abertamente sobre tudo. Do respeito por modos de pensar e de viver bem diferentes do nosso País. Ser Livre passou a significar ter de assumir responsabilidade pela minha Vida.
Recuso a imagem da mulher, coitadinha que sofre com o parto, com a menstruação, com a obrigação de cuidar da família, e de satisfazer o marido. Porra aos 20 e poucos anos a minha vida era o oposto disso. Antes e depois do 25 de abril. Dizem que nem para todas em Portugal. Se nessa altura euzinha já era fora do normal, imaginem agora aos 70 que passei do falar para escrever. Sobre tudo. Abertamente.
Há muitas coisas que me acontecem que sinto, mais que coincidências, têm um sentido. Que nesse momento desconheço. Sinto o mesmo em relação a algumas pessoas em que os nossos caminhos se cruzam. E que só faz sentido muitos anos depois. Peças de um puzzle que vou construindo. Testemunhos como este de hoje motivam-me a continuar a contar a perspectiva de uma mulher que viveu intensamente no século passado. Bom, estou ainda Vivinha da Vida.
Com terapeutas continuo a estudar sobre comportamentos abusivos. Vou continuar a investir neste caminho que já ajudou algumas pessoas. Estava à espera de reacções negativas. De quem na família pensa que podia ter continuado calada. Claro que fico triste por se terem afastado. Entendo que há verdades duras. É a história da minha vida. Cada um que conte a sua. Longe de mim querer ser um exemplo para alguém.
E ficam a saber que se voltasse atrás fazia de novo tudo o que consideram asneiras. E ia passar de novo por o que me fizeram sofrer. Tudo isso permitiu-me ser a pessoa que sou. E ter sido escolhida para ser mãe de duas mulheres fortes e avó de três homens maravilhosos.