Em pouco tempo passei dum estado de pura ingenuidade em que parecia ser possível mudar o mundo para uma bruta realidade da vida em Portugal.
Na Primavera Marcelista aconteceu tanta coisa que nos enchia de esperança. Em Maio o Congresso da Oposição em Aveiro. O luto académico com a greve aos exames em Coimbra e em Junho a final da taça de Portugal entre a Académica e o Benfica fez história. Apesar da presença da PIDE no estádio nacional, no intervalo os estudantes levantaram cartazes e o público percebeu que estava numa manifestação contra o regime. O Benfica ganhou com golo do Eusébio no tempo extra. Fora do Jamor o resultado soube a vitória.
Em Julho foi o máximo ver na televisão o homem a pisar a lua pela 1ª vez.
Em Setembro fui com a tia Alzira ajudar na campanha da CEUD na baixa de Lisboa. Políticos e outras pessoas que só conhecia de nome passaram a ficar a cores: Mário Soares, Jaime Gama, Francisco Sousa Tavares, Sophia de Mello Breyner Andresen. Esta fotografia tirada pelo Eduardo Gageiro foi publicada na página central do Século Ilustrado.
Estou com a Anita Pontes (de férias em Lisboa), o hippy do meu irmão Luis (de costas) e duas pessoas da CDE. Parecia primavera nesse dia 26 de outubro. Dar nas vistas deu resultado: pedimos emprestado o chapéu de sol em casa da Avó madeirense ali no Rato, a mesa e as cadeiras no café em frente. Onde estiveram sentados uns cinzentos pides todo o dia: quando víamos que iam tirar fotos, nós as duas fingíamos que nem víamos e pousávamos orgulhosas nas mini-saias. Cheguei a ir lá pedir lume... Estávamos a distribuir boletins de voto porque a lei impedia que as listas concorrentes constassem de um boletim único, a oposição teve de fazer os seus próprios.
Durante a campanha eleitoral andámos a distribuir os boletins. Em Santarém tínhamos uma lista de nomes e moradas; disseram que podíamos entregar também nos cafés e lojas. Com outra amiga achámos muito engraçado ir perguntar aos guardas da GNR e da Legião Portuguesa ‘Querem ficar com…?’ Os olhares foram entre o divertido e o 'cuidado'. Apanhei uma grande descompostura do Salgado Zenha, muito sério indicou os da Pide que nos andavam a seguir e que podíamos ter sido detidas. No regresso a Lisboa vim num carro pela costa e convenci o ‘camarada’ a parar em todos os cafés e bares: só homens, a cara deles quando viam uma desmiolada de mini-saia, recebiam logo os boletins. Estava tão feliz que fiquei furibunda quando o dono do carro, de 40 anos, pôs a mão nas minhas pernas e fez uma tentativa para me beijar.
Os resultados das pseudo-eleições livres foram uma desilusão. Nem a CDE nem a CEUD conseguiram eleger um único deputado. Uma semana depois recebi esse recorte da revista com um pequeno cartão do Ministério do Ultramar escrito à mão pelo meu Pai. Cortou a minha pensão de alimentos, passou só a pagar o ISLA. Nem percebeu que o meu irmão Luis também estava na fotografia, bom só tinha vindo ver as meninas e trazer-nos o almoço.
Nessa altura foi proposto fazer estágio pago no departamento de Meios da Êxito. Com o José Manuel Picão de Abreu recém-saído da prisão de Peniche. De quem fiquei amiga para o resto da vida.
O ambiente na agência era tão interessante! Nos corredores dava de caras com o Ary dos Santos, o António Borges, o António Pedro de Vasconcelos. Gostava muito de ir ao Atelier do Zé Ferreira ver como faziam os filmes de animação. Em dias de fotografias ou gravação de anúncios muitos modelos, mais elas. Um dia a descer o elevador a conversa era sobre um desodorizante feminino com sabor a fruta. Fiquei muito corada quando tu: ‘Prefiro com sabor a Carvalho Ribeiro Ferreira’, nem olhei para os outros.
Nos fins de semana passei a andar só com calças. Na agência era tudo muito moderno, mas as mulheres só podiam ir trabalhar de saias ou vestidos. Com frequência o telefonema ao meio-dia: ‘Vamos almoçar. Desce a x horas’. Passei a arranjar-me com mais cuidado. Os olhares curiosos quando entrávamos no Gambrinus, no Paquito, no Lacerda. Era evidente que tinha a mesma idade que a tua 1ª filha. Depois íamos ao apartamento em Campo de Ourique. Deixavas-me perto do ISLA na Lapa.
Nem queria acreditar quando convidaste a minha amiga São para ir contigo um fim de semana ao Porto! Pensavas que ia dizer que sim? E que nem me contava?! Deixei de atender os teus telefonemas. Passei a evitar-te na agência.
Até ao Natal quando nos encontrámos em família. Voltou tudo de novo. Mas eu estava diferente.
Ena, fantásticos tempos e fantásticas memórias. Por essa altura eu teria uns 9 anitos.. Foram precisos mais 2 para começar a subverter alguns costumes e mais 5 para viver a primeira felicidade coletiva que foi o 1º primeiro de Maio!