Com quase 25 anos, em 1969 eu já tinha participado na CEUD a favor do fim da guerra colonial, em 1970 tinha sido mãe solteira em Londres, entre 72-74 vivenciado a emancipação sexual na conservadora ilha da Madeira, andado de calças bocas-de-sino e sandálias de plataforma, praticado nudismo no Meco e na praia 19 da Costa da Caparica.
Era da geração do sonho do ‘Flower Power’ cair na rua e para todos. Acreditava estar a viver a possibilidade da revolução cultural, da luta pela liberdade para todos, por uma sociedade mais justa. O culto ao prazer livre, físico, sexual ou intelectual. Quando se dizia ‘está a acontecer’ era um facto. Com todas as suas alienações e os seus excessos.
Olhando para o período entre Agosto e Dezembro de 1974 creio que nem num filme em very slow motion consigo encaixar tudo o que vivi. Houve muitos dias que creio mal dormi (ou se cheguei a ir à cama). Aliás as minhas memórias são em planos paralelos dum mesmo momento.
Em Agosto de 74 comecei a trabalhar na sede do PS em S. Pedro de Alcântara. Com a posse de um novo governo provisório, com membros do PPD, PS, MDP/CDE e PCP, o ambiente era frenético no edifício, onde hoje é o The Independente Hostel.
O meu 1º trabalho no PS foi criar a base de dados dos filiados no partido. Há poucos anos com o José Neves rimo-nos por o termos conseguido fazer em 30 dias. Munida dos nomes e nº de telefones das pessoas da CEUD ou de amigos dos fundadores do partido lá ligava: «Na sua cidade conhece pessoas simpatizantes do PS? Pode dar-me os nomes e telefones para saber se se querem inscrever no partido?». E lá seguia o fax. Fui à Papelaria Fernandes comprar fichas e uma caixa de arquivo de cartão. Verde, claro sou sportinguista…
Em setembro.74 comecei a fazer parte da comissão organizadora do 1º Congresso. Ficava num andar secreto na Rua Artilharia Um, sem qualquer tipo de identificação na porta, para permitir a entrada discreta dos políticos, muitos membros do governo. Era a única ‘funcionária’, tínhamos conseguido dois números de telefone em nome do PS, as reuniões decorriam ao fim do dia. Uma noite atendi uma chamada: «É uma pouca-vergonha o que se passa com as prostitutas em Lisboa. Uma mulher honesta nem pode andar no meio da rua. O que o Partido Socialista vai fazer?» «Minha senhora, a esta hora estamos fechados. Posso dar-lhe a minha opinião: esse é um problema em muitos países. Diz-se que é a mais antiga profissão do mundo. Para essas mulheres esse é um ganha-pão porque há homens que as procuram. Creio que a solução pode ser legalizar a prostituição e dar direitos a essas mulheres.» Desligou logo. Quando voltei à sala de reuniões um silêncio e percebi pelo desviar de olhos que todos tinham ouvido. Lembro-me bem do sorriso carinhoso do Victor Cunha Rego.
A 27 de Setembro: «Sabes aquela tua caixa do Sporting? Tens onde a ir guardar?» Os telefones daquele escritório secreto estava sob escuta? Pelo COPCON!? Fui esconder o arquivo de cartão no fundo do meu armário em casa da Mãe e desatei a correr para S. Pedro de Alcântara.
Desde que o MFA tinha autorizado, para 28 de Setembro, a manifestação da Maioria Silenciosa de apoio ao então Presidente da República General Spínola que a tensão política era enorme. Dias antes eu tinha ido assistir à famosa corrida de touros do Campo Pequeno para se tirar fotografias com o José Couto Nogueira e a sua mulher Luiza, a minha grande e querida amiga, até hoje. Terminámos a noite na hamburgueria que o Carlos Martinho Camacho tinha perto da Avenida de Roma, a comentar «a petulante provocação ‘dos de direita’ ao primeiro-ministro e ao MFA», no meio de copos e risos.
Da noite de 27 e do dia de 28 só me lembro do rodopio de gente a entrar e sair na sede do PS: Mário Soares, Salgado Zenha, Lopes Cardoso, Sottomayor Cardia, os Tito de Morais, Raul Rego, Almeida Santos. Dos telefones (fixos) estarem sempre ocupados. Reuniões à porta fechada. Sei que alguém foi comprar comida (frangos, batatas fritas, pão e bebidas). Na madrugada de 28 de Setembro fiquei gelada quando vimos um destacamento militar descer pelo Bairro Alto. Afinal era para ocupar o jornal Bandarra que ficava ali perto, não era para nós.
O alívio foi tão grande que fomos festejar para o apartamento em Benfica que tinhas a meias com um amigo. «Não tens de ir para casa?» «Não, e tu?». Já nem escondíamos o nosso caso. Para mim achava normal, com a liberdade do 25 de Abril, assumir às claras andar com um político, casado. Percebi que para ti, com 45 anos, por um lado sentias-te bem por andar com alguém mais novo, mas ficavas atrapalhado por eu, mal saíamos do partido, gostar de andar de mão dada, de te beijar. Eu sabia que estavas habituado a ter amantes, mas às escondidas. A questão era eu ter 24 anos?
Numa sessão de esclarecimento no Alentejo estavas num canto divertido a ver-me responder: «E se tomar a pílula como é que o meu marido não vai saber?» «Toma a pílula desde os 19 anos? E ainda nem casou?!?» Nessa noite parecias um miúdo contente com um doce proibido: fizemos amor num beliche, vá lá tivemos direito a ficar os dois na cama de baixo…
Um fim de semana estava a trabalhar na Artilharia Um, a minha filha a brincar no chão com a Gabriela, filha da Luiza e do Zé. Na porta o Mário Soares. ‘Vi os estores abertos’. Ficou divertido com as miúdas de 4 anos. ‘Sabem quem sou?’ Eu de olhos muito abertos… As duas sérias a olhar para cima ‘És o Marocas, apareces na televisão’. Respirei aliviada, estava à espera de ‘Bochechas’.
Em vésperas do Natal, a minha Mãe '«Chegou esta cesta para si». Só com um cartão da Charcutaria do Rato. Tinhas escolhido tudo o que sabias que eu gostava, de queijos, de vinho, até os doces de ovos. E uma orquídea. Para mim senti como um bom presente de despedida.