Respondo aqui à pergunta colocada sobre a minha publicação de 14.07.2024: “Valiosos, os ensinamentos da sua tia, absolutamente! Contudo, como lidar com a experiência que teve no retorno a Lisboa? Ninguém merece, muito menos uma criança. Que cobardia! (peço desculpa por estar a qualificar a atitude do seu pai, mas é revoltante…na minha vida profissional, tive dezenas de alunos cujo progenitor fez o mesmo que o seu… desculpe)”
A minha publicação no FB e Insta: “VIVER COM TESÃO É A SOLUÇÃO. 🥳 Aprendi com a tia Alzira a importância de viver livre e com muito prazer. 🥰 Ter prazer pela VIDA, pelas coisas, pelos lugares, pelas pessoas, pelas experiências, pelo trabalho, pelos desafios. Viver com prazer dá trabalho: vale MUITO a pena, posso garantir! ...As férias no verão de 1959 foram maravilhosas. Tão felizes com a Mãe, os meus irmãos, a família da Madeira e tantos amigos. Até regressarmos a Lisboa. O Pai tinha saído de casa. Sem um adeus, nem um beijo, nada. Com 9 anos eu era a menina mimada do papá. A minha irmã era a querida, eu a mimada. Tinha ido viver para outra casa. O meu primeiro desgosto de amor. As primeiras lágrimas por amor. A primeira fúria #poramor”
A minha resposta Criança de 9 anos já estava habituada às questões serem tratadas às escondidas. Em Portugal nos anos 50-60 nada era abordado claramente, o silêncio fazia parte das nossas vidas. Assim, como o medo. Em 1958, lembro bem quanto chorei a ver o meu irmão Ani, 16 anos, a apanhar de cinto porque tinha ido à manifestação de apoio ao general Humberto Delgado, o candidato da oposição às eleições presidenciais. Como era possível o pai que eu gostava tanto bater assim no meu querido irmão?! Eu já nem ligava ao facto de, quando o Pai estava em casa, o mais novo o Luís comer de castigo na cozinha muitas vezes – até por que a Mãe, pelas costas, o mimava com o bifinho e batatas fritas. Admirei a coragem do Ani: nem uma lágrima, só raiva, tanta, tanta raiva naquele rosto tão bonito. Fixei a frase «Obviamente, demito-o!», se eleito a saída do Salazar poderia ficar sem emprego no Estado? Era por isso?
O Pai ter saído de casa, ter ido viver para outra casa não foi exactamente uma surpresa. Desde os 5 anos que eu tinha cuidado a entrar no seu escritório para evitar cenas que já entendia serem proibidas. A primeira vez foi na Misericórdia quando vinha de pousar para o retrato que Hilário Teixeira Lopes me pintou: a cabeça duma qualquer a levantar-se atrás da mesa e o pai a apertar as calças. Depois quando o acompanhava aos jogos de futebol no Sporting ou no Belenenses sabia que se encontrava com uma senhora nova – nem se escondia e nunca o comentei. Entendi como um segredo nosso.
O incompreensível foi ter saído sem um adeus, nem um beijo, nada. A minha irmã era a sua querida, eu a mimada. Teria falado com a Teresa, 17 anos? Fiquei com ciúmes.
Senti-me abandonada. Em Lisboa naquela casa cheia de gente. Chorei escondida atrás da cortina da sala, junto à porta que dava para o quarto dos pais.
Em Dezembro a primeira reacção física visível. ‘Onde está a Teresa?’ Os meus irmãos ‘Saiu com a Mãe, o que a menina precisa?’ ‘Uma toalha, um penso, veio-me o período. Vou pedir à criada’. Presente de Natal.
A minha primeira fúria por amor foi contra a Mãe. Durante anos culpei-a por, na minha opinião, fazer com que o pai fosse procurar fora de casa outras mulheres. E o deixar-nos numa situação frágil, de dependência em relação ao ‘provedor da família’. Jurei a mim própria, aos 9 anos, que nunca iria depender financeiramente de ninguém. Que tinha de ganhar essa liberdade, custasse o que custasse.
Só muitos anos mais tarde consegui fazer as pazes com a Mãe. Consegui perdoar-lhe a opção de ficar em segundo plano, uma mulher tão talentosa e com meios próprios da Madeira. Por ter-se preocupado mais com a imagem externa da família, por ter tentado esconder, durante tantos anos, o que se passava dentro de casa. Soube aos 14 anos, porque a minha irmã me telefonou a contar, para evitar que acontecesse também comigo.
Com o apoio de terapeutas entendi que o abuso sexual e o incesto devem ser tratados em família. E que nunca há respostas simples.