Há 10 anos estava a tentar encontrar a maneira de se falar abertamente sobre abuso sexual e recomendaram-me a psicoterapeuta Maria Fernanda Reboredo.
A 1ª lembrança de me masturbarem tinha 5 anos. Estava no barco a caminho da Madeira onde íamos passar férias. E de ver um homem a masturbar-se. Era namorado da minha tia Alzira e uns 40 anos.
Essas cenas foram recorrentes com outros abusadores próximos da família durante toda a adolescência. Dava-me prazer físico, percebia que era algo para se manter em segredo. O ver pessoas mais velhas fazer o mesmo às escondidas, fazia-me sentir desejada. Só muitos anos depois entendi os problemas causados por esse despertar precoce para a sexualidade. A mim, a parceiros e às gerações seguintes.
Imaginam com 14 anos nas primeiras experiências com namorados preferir pôr a boca no sexo do rapazinho porque me provocava vómitos tocar com a mão? Sentia nojo na masturbação. De beijar, gostava. Nessa altura o peito começou a crescer, a crescer tanto que eu tentava esmagar com soutiens apertados. Lembro-me de, naquelas festinhas nas casas uns dos outros em Lisboa, ouvir um gabar-se que já me tinha apalpado as mamas. Parecia um concurso…
Nessa altura homens amigos da família andavam atrás de mim para meter a mão. Quando fiquei 3 meses de cama com hepatite a taradice era tanta que, com as amigas, já nos ríamos dos olhares que deitavam na camisa de noite e do tempo que demoravam a despedir-se para se roçarem.
Com 15 anos aprendi a dizer ‘NÃO’. E a bater com portas. Alto. Até aí achava que tinha um cheiro que atraía homens ‘mulherengos’. Ao conviver mais com o marido da tia Ângela, o querido Henrique (Ornelas) entendi o que é Amor filial. Carinho, sem toques sexuais.
Essa tomada de consciência do peso dos ‘tabus’ e do ‘segredo’, aliada ao continuar a crescer em sítios inadequados para quem faz ballet, foram a base para a bulimia. O médico receitou um medicamento para reduzir o apetite e queimar gorduras. Eram anfetaminas. Só me lembro de no exame do 5º ano querer responder a umas perguntas e só rir feita parva.
Aos 18 anos o meu iniciador sexual, 30 anos mais velho e conhecedor dos incestos, ensinou-me a gostar do meu corpo e a ultrapassar inibições. Comer compulsivamente agravou-se como válvula de escape para neutralizar o mal-estar do envolvimento com esse meu cunhado. Entrei no círculo vicioso de todos os dias tomar diuréticos e laxantes. Era capaz de ir à Versailles comprar uma dúzia de éclairs cheios de chantilly. Comer às escondidas e depois ir provocar os vómitos. O que passou a ser um recurso habitual.
Só com 50 anos quando rebentou o escândalo da Casa Pia ficou claro o que era abuso sexual de menores. Aí as peças do puzzle saltaram e comecei o meu percurso terapêutico. No Brasil tive a sorte de encontrar profissionais muito competentes que me ajudaram a desbloquear o âmago oculto da minha sexualidade. Assim como a razão de nunca conseguir entregar-me completamente a alguém, da minha incapacidade de ter 100% de confiança noutra pessoa o que muito interferiu na qualidade dos meus relacionamentos. Algumas das conclusões dos comportamentos abusivos foram dolorosas.
Abuso sexual
Em 2007 quando voltei do Brasil e ao falar com terapeutas percebi que o abuso sexual de menores, já reconhecido como crime, era muito mais frequente do que imaginava. Em todos os níveis da sociedade. A maior parte das vezes no ambiente familiar.
Estudei muito sobre o tema até encontrar a querida amiga Fernanda. Que ajudou muito no processo de perdoar quem me deveria ter protegido. E de analisar a doença dos abusadores. Que já morreram. E de fazer as pazes com esta família disfuncional.
Foi quando tivemos a ideia deste projecto. Ao falar com a minha Mãe prometi que ia fazer tudo o que pudesse ‘para evitar que casos destes aconteçam noutras famílias’.
Tenho 70 anos. Com memória sensorial, lembro de tudo: os sons, os cheiros, os locais, os silêncios. Sou também uma combatente. Essa ferida está cicatrizada. O distúrbio alimentar ficou. Tem dias melhores que outros. O projecto POR AMOR.EU tem este cariz terapêutico. Optámos pelo caminho DO AMOR para se falar abertamente sobre comportamentos abusivos.