Durante muitos anos senti-me um homem a transbordar no corpo de uma mulher. Tive muitas dúvidas sobre a minha orientação sexual.
Hoje quero falar sobre a minha paixão pelo meu amigo que é bissexual. Imaginam o que era assumi-lo abertamente nos anos 70? Na ultra-conservadora ilha da Madeira?
No nosso muito restrito grupo de amigos no Funchal criámos uma bolha de práticas meio hippies: liberdade sexual, liberdade de expressão, liberdade para cada um fazer o que muito bem lhe apetecia, com respeito uns pelos outros. Creio que também era uma forma de nos revoltarmos contra as guerras - a colonial e a do Vietname.
Na sociedade madeirense meia-feudal dava-nos imenso prazer a liberdade de transgressão. Essa foi a minha principal atração no Carlos Martinho Camacho. A alegria com que vivia os extremos. Com que excedia os limites. Todos.
Desde que conheci o Martinho sabia que andava tanto com mulheres como com homens. Foi a primeira pessoa com quem falei sobre as minhas dúvidas de eu ser bissexual. Como mãe solteira, sentia que eu assumia um comportamento mais masculino: o provedor, quem saía para trabalhar e para viajar; até mais ativo na procura de amor e de parceiros sexuais. Enquanto que a minha Mãe e a Isabel (a minha amiga que na Madeira tomava conta da Sofia) desempenhavam o papel feminino: tomavam conta da casa, iam buscá-la à escola, tinham mais tempo para brincar, mais passivas.
“Pequena, tens de experimentar e logo vês”. Fomos para a sua casa em S. Gonçalo: jantar com uma sua amiga inglesa, à luz de velas com vista maravilhosa sobre o mar. Poncha de maracujá, caril de camarão e vinho bem gelado. Em frappé e tudo. Uma noite quente a três. Com muito carinho. Com muito tesão. Senti que os dois me queriam dar um prazer inesgotável. Ri-me pois parecia uma boneca: viravam-me, reviravam-me, vasculhavam-me. No pequeno almoço: “Queres estar sozinha com ela?” ‘Gostei MUITO. É uma mulher muito bonita. Mesmo muito querida. Mas não sinto atracção nem física, nem sexual por ela. Por ti, sim. A três, pode ser’.
Adorei também o fascínio que o Martinho provocava na minha filha. Era um sedutor, além da invulgar beleza física possuía um charme incomparável. Aos 3 anos ele foi a sua primeira paixão. Era mútuo. A Sofia adorava quando ele a vinha buscar. Divertia-se no papel da filha do pai divorciado. Teatro que representava quando havia uma estrangeira, recém-chegada à ilha. Até já o tratava por ‘Daddy’. E lá ia toda contente para a piscina.
Um dia muito chateada quando voltou da Escola Britânica. “Os pais dos meninos às vezes também vão buscá-los. De carro”. Bem expliquei que a Isabel é que fazia isso. Eu poderia um dia sair mais cedo do trabalho e ir buscá-la. Nada. Nesse dia mal jantou. Foi para a cama tão amuada. O Martinho gostou da ideia de ir buscá-la. A Isabel a ver de longe contou-me tudo: chegou de descapotável. A cara das mães das crianças ‘Daddy!’, o beijo e abraço. Fez questão de abrir-lhe a porta do carro e pôr a pasta e o cesto do almoço no banco de trás. A Isabel só entrou mais abaixo. Nessa noite fomos todos jantar ao Belo Mar. Tão felizes. A Sofia com um sorriso tão feminino para aquele homem realmente irresistível.
Nesse Setembro de 73 estávamos todos muito excitados com o Rally da Madeira. Por causa da crise financeira só uma dezena de equipas continentais vieram de Lisboa, quatro das ilhas Canárias, uma dinamarquesa e uma dos Açores. Pelo que havia muita expectativa pelo bom desempenho das equipas madeirenses. Lembro da aflição de entre duas classificativas ter-se perdido o contacto com a bomba-verde do Alexandre Rebelo que entretanto já tinha as cores laranja e azul do Team VIP. Lá nos metemos no mini do Martinho e, de noite, fomos desde a última classificativa a olhar para todos os lados a ver se tinham caído. Afinal estavam a comer e beber numa tasca.
Com o Martinho sempre partilhei o nem pensar em casar. Seria coartar a nossa liberdade individual o fazer concessões a alguém que pudesse viver junto. Por isso a minha surpresa quando “Ela quer que eu vá para a Alemanha”. Já conhecia o casal de Munique, tínhamos ido jantar ao Galo no Caniço de Baixo. Seria o aniversário do Martinho? Era óbvio que a alemã estava apaixonada. Eu ia falando com o marido. Estávamos todos muito divertidos. Eu devo ter bebido a mais. Fumado também? Sei que aquela piscina estava uma tentação. Daquelas noites de calor suão. Desci, despi-me e nadei. Crawl, como gostava. Soube tão bem, assim nua. Quando cheguei ao outro lado, o Ricardo Bachmeier com uma grande toalha. Já o conhecia. O Martinho vivia numa casa dele à entrada do seu deslumbrante casarão quadrado em S. Gonçalo. Tinha tanta inveja daquela vista maravilhosa sobre a baía do Funchal. E admirava a urbanização Contrata que a família Bachmeier estava a construir no Caniço.
Mesmo assim, foi uma segunda surpresa o telefonema do Ricardo. Má. “O Martinho saiu da Madeira e deixou um bilhete com o seu número. Disse que a Isabel pode tratar das coisas dele”. Ainda sorri com a memória do susto que tinha apanhado uns meses antes naquela casa. Nesse dia o carro do Martinho estava cá fora e entrei confiante pela varanda aberta. Barulho no quarto – quem seria? Abri devagar e fiquei petrificada. Tive de sentar-me na sala. Era o Martinho e o meu namorado da altura. Aquele jovem, lindo com quem eu tinha ido passar um fim de semana ao Porto Santo. Fiquei a espreitar na porta. Juro que aqueles dois homens a fazerem sexo era uma imagem tão erótica e bonita. Nada a ver com pornografia. Fui embora. Só consegui falar sobre o sucedido uns dias depois.
Desta vez desci aquela vereda com um aperto de coração. Tinha-se ido embora sem se despedir! Como contar à Sofia? O Luís, irmão do Martinho, pediu ao pai para ir a minha casa buscar as coisas. O que dizer àquele senhor? Charmoso, também. Olhava com tanto carinho para a Sofia ‘Não, sou mãe solteira.’
Com o Martinho ao longo dos anos sempre trocámos cartas e telefonemas. Encontros, também. Mantivemos uma relação estreita. Quase estive para ir para o Brasil com ele e os nossos amigos, a Luiza e o José Couto Nogueira. Muitos mais episódios com este grande amigo.