No Partido Socialista em finais de 1974 já tínhamos uma sala refrigerada com computadores enormes. Para onde as queridas amigas brasileiras Luiza Couto Nogueira e Lúcia Tito de Morais passaram a base de dados dos militantes. Depois a minha caixa de arquivo em cartão passou a ter um valor ainda maior. Já lá vamos.
Passado o susto do 28 de setembro o sentimento é que as conquistas da revolução estavam no bom caminho. Com a saída do general Spínola, Costa Gomes era o novo Presidente da República. Vasco Gonçalves o 1º ministro do III governo provisório, formado por 3 partidos de coligação (PS, PPD, PCP) e muitos independentes (de várias cores). Parecia haver condições para tratar dos graves problemas económicos e sociais que o país atravessava.
Com a marcação do 1º Congresso do PS para 13-14-15 de Dezembro, eu tinha pouco tempo para acompanhar o que estava a acontecer no país. Depois de deixar a minha filha na creche no Rato, ia de elétrico para S. Pedro de Alcântara. Aí a balbúrdia reinava. Só que com o Xis Calheiros parecia que estava tudo organizado: eu enviava telex para a imprensa e convidados de todo o mundo (fitas perfuradas rosas), passava para stencil os comunicados e os panfletos com as palavras de ordem para as manifestações que havia por todo o lado (lembro dos dedos pretos dos químicos) ou ajudava a executar as decisões da Comissão Directiva.
À tarde depois de pôr a minha filha em casa, ia a correr para a Artilharia Um para as reuniões de preparação do Congresso, sob responsabilidade do Victor Cunha Rêgo (na altura chefe de gabinete de Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros). A lição de vida que me ensinou foi o papel crucial de estar na retaguarda, a influenciar com eficácia o rumo das coisas, deixando o protagonismo para outros. Ainda há pouco um coachee disse que essa é uma das minhas qualidades. Aprendi com um mestre.
«O problema histórico português para mim é sempre o de um Estado prepotente. A nação portuguesa forma-se através de um Estado avassalador e de uma sociedade civil muito fraca e com pouca capacidade de reacção.» «Outros esquecem-se de que a dúvida é o princípio da invenção e de que quem faz a guerra são os mesmos homens que amam a paz e que é tão errado ou tão certo vivermos orgulhosamente sós como vivermos de qualquer maneira. Depende da necessidade que sentimos de resistir em espaços não unificáveis pela obediência ou crenças cegas. “
Fora de horas o jantar. Quando podias, íamos ao tal apartamento em Benfica que dividias com um amigo também do PS. Ou saíamos com o Victor e a Ivonne ouvir fados ao Embuçado. A Mercês Cunha Rêgo vivia com a minha prima Manuela Ornelas.
No congresso apresentei uma moção e quando me vi em frente a todos os que enchiam a Aula Magna da Reitoria, fiquei sem palavra. Na plateia os convidados estrangeiros e nacionais. Nos balcões os delegados de todo o país. Acharam graça à miúda de 24 anos, riram, bateram palmas e lá consegui falar. O facto é que a proposta do Sottomayor Cardia foi aprovada abrindo a porta a que filiados recentes pudessem aceder a posições governativas. Como foi o caso do António Barreto. Os do MES (Movimento de Esquerda Socialista) demoraram mais tempo a filiar-se. Tiraram ilações do que observaram no congresso?
A direcção do PS viu-se ameaçada por uma 2ª lista para a Comissão Nacional. Este movimento de oposição interno foi liderado por Manuel Serra, fundador do Movimento Socialista Popular (integrado no PS como grupo autónomo). Nos arquivos do partido é denominado como ‘grupo cristão de acção directa’ e ‘de linha obreirista-populista’.
Olhando para o umbigo e à distância, creio que os da lista ‘B’ éramos uns românticos com a intensidade do sonho de um partido mais de base e menos de poder. Enquanto no discurso de Mário Soares refere o PS como "partido de governo", na solidariedade com os partidos da coligação (PPD e PCP) do 3º Governo Provisório e na conciliação entre a política do governo e a "política na rua", Manuel Serra discursa sobre a importância do PS na "revolução da classe trabalhadora". Os dois são aplaudidos de pé pelos delegados. O facto é que as mensagens simples, directas e apaixonadas dos apoiantes da lista ‘B’ faz com que obtenha 44% dos votos dos delegados.
Esta ‘luta ideológica’ obriga a fazer uma reestruturação interna, tendo Manuel Serra sido incluído no primeiro Secretariado Nacional.
As dúvidas quanto à manipulação dos votos da lista ‘B’ fez com que tanto o Xis Calheiros como o Victor Cunha Rêgo se sentissem pessoalmente atacados.
Cutileiro «Aquilo que Victor Cunha Rego fez melhor do que ninguém foi perceber a esperança e os perigos do 25 de Abril; exprimir admiravelmente essa percepção e usar o seu talento de conspirador para que a água fosse levada ao seu moinho. Sempre com o mesmo rigor ético.»
A ferida estava aberta e citando Cunha Rêgo «A liberdade ou existe dentro de nós ou não é possível encontrá-la numa vitrine, comprá-la e pô-la no colo».