Afinal a história de amor livre era de via única
1969. Vivenciar o fascinante mundo da publicidade
Das aulas de educação sexual passámos a ter um caso. De amor livre, como dizias. Além do apartamento em Lisboa que passou a ser na Rua Ferreira Borges, tinhas uma casa nas Azenhas do Mar, para os nossos encontros quando estávamos com a família na Praia das Maçãs.
A música passou a ser o nosso ponto comum. Escrevias uma crítica para o Diário de Lisboa e passei a receber as revistas ‘Rolling Stone’ e ‘Salut les Copains’ e todos os discos novos dos Beatles, Rolling Stones, Janis Joplin, etc. Tu ficavas com a música clássica, jazz e bossa nova. Por isso comecei a ter bilhetes para concertos no Monumental ou no Villaret. Quando ia contigo muitas vezes havia ceias no fim. Lembro de achar o Vinícius de Moraes parecido contigo: mulherengo, charmoso, o cigarro e o whisky na mão. Ficaste irritado porque fiz namoro descarado ao Chico Buarque, que mal falou, com uns olhos verdes tímidos.
Nas férias da Páscoa foi um grupo grande ao Algarve. Era complicado estar junto. A casa na Praia d’El Rei estava cheia e a minha mãe andava por perto. Aproveitavas as idas de irmos comprar comida em Tavira – para ser mais rápido, eu ia ao talho, tu à mercearia. Um local mais escondido e baixavas o assento do boca-de-sapo. Uma vez fomos até à praia, ainda se atravessava a ria de barco. Estávamos os dois nus no mar ‘Não olhes, temos espectadores’. Ri-me quando me viraste um pouco e ficámos os dois de lado para a duna. Acho que a situação te excitou, foi divertido. No fim saímos de mão dada, ajudaste-me a vestir calmamente. Fomos muito juntos no barco de volta.
Em Lisboa quando saía do ISLA comecei a ficar curiosa de quem mais ia ao teu apartamento em Campo de Ourique. Passei a reconhecer alguns dos teus amigos publicitários e depois observar nos fins de semana quando apareciam com as mulheres. ‘E se elas também andarem com outras pessoas?’ ‘Ah, as mulheres são diferentes, são sentimentais’. No dia em que te vi chegar com a mulher dum amigo: ‘Afinal, com quantas pessoas andas? Ele sabe?’ ‘Esta relação já vem antes deles terem casado’. E lá saiu a história do amor livre.
No ISLA eu andava muito com a amiga São que vivia em casa duns tios. Quando a minha avó estava na Madeira começámos a ficar no apartamento da senhora perto do Rato, ‘oficialmente’ para podermos estudar melhor. As festas de fim de tarde eram divertidas. Saíamos para dançar com amigos, mas tínhamos receio de dizer que estávamos ali sozinhas. Em Junho antes dos exames perguntei-te se podia ir uns dias para a casa da Praia das Maçãs com outras colegas. Com conta livre na mercearia a tentação foi demasiada: na 5ª feira elas convidaram os namorados e uns amigos. A festa durou até de manhã. Tivemos de os pôr na rua para arrumar tudo e voltar para Lisboa. No sábado ainda os pratos e copos estavam meio húmidos.
Nesse verão de 1969 as coisas complicaram-se. Eu ficava na Praia das Maçãs com uma empregada a tomar conta dos meus sobrinhos. De manhã preferia ir com eles à piscina. Depois do almoço e da sesta íamos passear. Encontrava amigos que convidavam para sair à noite. Comecei a ir dançar à Teia ou ao Concha.
À noite a caminho da casa de banho já vinhas ao meu quarto. Eu ficava com medo que se ouvisse a cama de ferro. Um dia o Fernando e a Greta estavam lá a passar o fim de semana, a dormir no escritório e ele viu-te. Nessa noite fomos todos ao Casino no Estoril, no regresso a Greta vinha a dormir atrás e ele começou a apalpar-me, discretamente. Lá o afastei e quando chegámos a casa disse-te. Ficou por aí. Gostei que te tivesse desagradado.
Noutro fim de semana houve um almoço na casa da Praia com muita gente da Êxito, de outras agências e dos meios. Montámos as mesas na garagem e no jardim. Eu gostava de te provocar: discutimos música com o Ruella Ramos. Quando estavam a servir o café levaste-me para a casa de banho cá em baixo: ainda me lembro da cara do Álvaro Belo Marques quando nos viu a sair.
Uma noite o Nico combinou vir-me buscar. ‘A Teia’ no clube era mesmo perto. Em vez do Fiat pequeno com que costumava andar, trouxe o carro dos pais. Fiquei divertida com o teu ar furioso, a olhar da varanda: a dar-me um beijo, a abrir a porta. Quando regressei de madrugada o jardim estava cheio de cacos verdes do peixe de cerâmica Bordalo Pinheiro da mesa da sala. E tu no sofá a ouvir música, de whisky e cigarro na mão. ‘Boa noite’ e fechei-me à chave no quarto. No dia seguinte ao almoço com toda a gente presente, as perguntas irritadas ‘Quem é esse teu novo namorado?’ ‘Novo, porque tem vinte e poucos anos?’ ‘Estás muito fresca’. ‘É um bom amigo, a minha mãe acha o Nico muito simpático’, porquê?’ Inventei que tinha de voltar para Lisboa. Afinal a história de amor livre era de via única.