A minha descoberta do que realmente significa LIBERDADE e DEMOCRACIA
Nos anos 60 e 70 do século passado. Bem antes do 25 de Abril.
Quero apresentar quem foi muito importante na minha descoberta da LIBERDADE e da DEMOCRACIA. O tio Henrique, marido da Ângela, a irmã mais nova da minha Mãe.
No dia 17.12.1970 ‘ataque de coração quando estava a chegar ao escritório’. No mesmo café onde gostávamos de ir. À noite a tia Ângela chegou da Madeira: eu e a tia Madalena a fazer conversa no mini. Um silêncio tão pesado. Quando chegámos à Basílica da Estrela: ‘O Henrique não ia querer isto’. No dia seguinte nem uma lágrima, só a mão gelada tão apertada na minha. Muitas pessoas a cumprimentar o tio Fernão e a tia Ângela cada vez mais encolhida, de olhar vazio. Viúva aos 40 anos, quando casou aos 18 'Ainda trouxe uma boneca’.
O meu Pai ao telefone: ‘Soube agora do Henrique. Era muito seu amigo, não era?’ 'Sim. O meu Pai de verdade morreu hoje.
Aos 9 anos o meu Pai saiu de casa e no ano seguinte comecei a conviver muito com estes tios. Quando vivenciei o que realmente significa Liberdade. O tio Henrique pediu para ir passar os fins de semana a casa deles em Rio de Mouro por que os 2 primos, da minha idade, eram introvertidos e ia fazer-lhes bem conviver com uma rapariga extrovertida. Habituada na minha casa às regras impostas pelo meu Pai e aos castigos dos indisciplinados, a minha sensação é que tinha ido viver para um mundo estrangeiro – cada um podia fazer o que muito bem lhe apetecia, sem dar satisfações a ninguém, bastava informar.
A princípio ficava perdida: o primo mais velho, o Zé Manuel, tinha ido de comboio sozinho ao cinema a Lisboa; o do meio, o António, estava fechado no quarto a ler; a tia a tratar do jardim; o tio na cave a concertar algo; o mais pequeno, o Pedro, a brincar com uma família imaginária ‘Cuidado não pises o sr…’(?!), a empregada de folga. À hora das refeições se alguém aparecia mais tarde, a comida ficava num tabuleiro na cozinha.
Tudo era levado muito a sério e também se tornava muito divertido. Quando comprou um pequeno veleiro: o tio tirou a carta de patrão de costa, nós todos fomos tirar a carta de marinheiro. Quando de saída para o Algarve a cadela com o cio – foi comprar um ‘cinto de castidade’. Imaginam os pescadores em Lagos? A galhofa: ‘Oh pá, devias comprar um para a tua irmã!’.
Noutro verão alugaram uma casa na praia, perto de Sesimbra, e ficámos 6 primos, entre 10 e 14 anos, duas semanas sózinhos com uma empregada; eu e a Isabel Ornelas fizemos um acordo: ela comia a minha dieta para emagrecer e eu a dela para engordar – ninguém questionou.
De férias na Foz do Arelho a 1ª vez que fui protegida quando assediada por um adulto, já com 14 anos. O tio Henrique falou com ele, depois comigo e ao jantar a conversa com todos sobre ‘desejo sexual’, ‘o abuso sexual’, ‘o consentimento e o não’.
Foi quando aprendi a dizer ‘NÃO’. E a bater com portas. Alto. Até aí achava que tinha um cheiro que atraía homens ‘mulherengos’. Com o Henrique entendi o que é AMOR filial. Carinho, sem toques sexuais.
Essa tomada de consciência do peso dos ‘tabus’ e do ‘segredo’, aliada ao continuar a crescer em sítios inadequados para quem faz ballet, foram a base para a bulimia. O médico receitou um medicamento para reduzir o apetite e queimar gorduras. Eram anfetaminas. Só me lembro de, no exame do 5º ano, querer responder a umas perguntas e só rir feita parva. Ainda hoje lembro do presente dos 15 anos do tio Henrique: uma tablete enorme de chocolate Cadbury’s de nozes e passas, que tinha trazido de Inglaterra quando na altura eu só ouvia ‘não coma isso que engorda.’ Continua a ser o meu preferido.
Imaginam em 1965 quatro adolescentes de 14 e 15 anos sózinhos um mês inteiro no Parque de Campismo de Monsanto? A tia tinha ido à Madeira com o mais novo. Com o tio montámos uma tenda grande com a cozinha para mim e outras três pequenas para o meu irmão Luís e os primos Zé Manuel e António. No meio um bom espaço de convívio com mesa e cadeiras. De comum acordo foram definidas as tarefas de cada um. Os engenhocas montaram antenas numa árvore e passámos a ter festa todas as noites com música da Radio Caroline: Elvis, Aretha, Beatles; eu fazia sangria no cesto da roupa, a comida ia aparecendo. Fuminhos também. O tio vinha só no sábado para nos dar mais dinheiro, almoçava connosco para conversar: o que tinha corrido bem, como tínhamos resolvido problemas. E ajudava a ultrapassar conflitos – que discussões havia muitas, principalmente minhas com o mais velho...
Quando aos 16 anos fui à Suécia acompanhar a minha Mãe fazer uma cirurgia a um aneurisma cerebral 'Os meus amigos dizem para ir ver filmes pornográficos no cinema'. 'Claro, mas vai à tarde'.
Na sua casa aprendi também a aprofundar as questões com alguma profundidade. Nós adolescentes podíamos escolher temas para falar: aí apareciam livros para entender (o google estava longe) e depois poder questionar, opinar, discordar. As discussões apaixonadas eram pacíficas. A estante estava cheia de livros proibidos: o que mais me marcou ‘As Memórias de Adriano’ de Marguerite Yourcenar. Ainda hoje tenho comigo o ‘Aimez-vous Brahms’ de Françoise Sagan. À noite deitados nos sofás ou no chão as poesias de Miguel Torga, José Régio, Manuel Alegre e as músicas de Adriano Correia de Oliveira, José Afonso e Luís Cília abriram-nos os olhos sobre a realidade política, o fascismo e a democracia.
Com 20 anos, no início de Nov.1970, voltei de Londres com uma filha nos braços, nem uma pergunta, só ‘Vais ter de começar a trabalhar’. Quando ia passear a Sofia ao Parque, passava no seu escritório na Av. Sidónio Pais para ver os anúncios no jornal. Uma entrevista correu muito bem para secretária de administração num banco: ‘Nem pensar’. 'Mas pagam muito bem'. E contou o escândalo dos Ballets Rose.
A única regra de que me lembro ‘cada um é responsável pelos seus actos e pelas escolhas que faz. Errar e mudar de opinião é sempre possível’.