Nem imagino o que terá sido para a minha filha com 4 anos ter passado da Escolinha Alemã no Funchal para o Jardim-infantil da obra social da Igreja da Conceição ao Rato. ‘Oh mãe, os meninos até têm piolhos’. A avó ainda a inscreveu nas Doroteias, mas como pianista no Conservatório a senhora também não tinha condições de o pagar. A receber salário mínimo no PS tudo teve de ser reduzido ao básico, o viver de novo em casa da minha mãe foi uma grande ajuda.
Olhando para o período entre Agosto e Dezembro de 1974 creio que nem num filme em very slow motion consigo encaixar tudo o que vivi. Houve muitos dias que creio mal dormi (ou se cheguei a ir à cama). Aliás as minhas memórias são em planos paralelos dum mesmo momento.
No PS ficou muito claro logo no 1º dia que conseguia trabalhar muito bem com o Xis Calheiros. Até 1990 sempre que tinha um novo projecto ‘Borges, precisamos de ti’. E lá ia eu, ajudar a implementar uma nova iniciativa.
O meu 1º trabalho no PS foi criar a base de dados dos filiados do partido. Há poucos anos com o José Neves rimo-nos por o termos conseguido em 30 dias. Munida dos nomes e nº de telefones das pessoas da CEUD ou de amigos dos fundadores do partido lá ligava: ‘Na sua cidade conhece pessoas simpatizantes do PS? Pode dar-me os nomes e telefones para saber se se querem inscrever no partido?’. E lá seguia o fax. Fui à Papelaria Fernandes comprar fichas e uma caixa de arquivo de cartão. Verde, claro sou sportinguista…
Em setembro.74 comecei a fazer parte da comissão organizadora do 1º Congresso. Num andar na Rua Artilharia Um era a única ‘funcionária’, tínhamos conseguido dois nºs de telefone em nome do PS. As reuniões com os políticos decorriam ao fim do dia. Uma noite atendi uma chamada: ‘É uma pouca-vergonha o que se passa com as prostitutas em Lisboa. Uma mulher honesta nem pode andar no meio da rua. O que o Partido Socialista vai fazer?’ ‘Minha senhora, a esta hora estamos fechados. Posso dar-lhe a minha opinião: esse é um problema em muitos países. Diz-se que é a mais antiga profissão do mundo. Para essas mulheres esse é um ganha-pão porque há homens que as procuram. Creio que a solução pode ser legalizar a prostituição e dar direitos a essas mulheres.’ Desligou logo. Quando voltei à sala de reuniões um silêncio e percebi pelo desviar de olhos que tinham ouvido. Lembro-me bem do sorriso empático do Victor Cunha Rego.
A 27 de Setembro: ‘Sabes aquela tua caixa do Sporting? Podes ir guardar?’ O telefone estava a ser seguido? Pelo COPCON? Fui esconder o arquivo no meu armário em casa da mãe e desatei a correr para S. Pedro de Alcântara.
Desde que o MFA tinha autorizado, para 28 de Setembro, a manifestação da Maioria Silenciosa de apoio ao então Presidente da República General Spínola que a tensão política era enorme. Dias antes eu tinha ido assistir à famosa corrida de touros do Campo Pequeno com o Zé Nogueira e a sua mulher Luiza, para ele tirar fotografias. Terminámos a noite na hamburgueria que o Carlos Martinho Camacho tinha perto da Avenida de Roma, a comentar «a petulante provocação ‘dos de direita’ ao primeiro-ministro e ao MFA», no meio de copos e risos.
Da noite de 27 e do dia de 28 só me lembro do rodopio de gente a entrar e sair na sede do PS: Mário Soares, Salgado Zenha, Lopes Cardoso, Sottomayor Cardia, os Tito de Morais, Raul Rego, Almeida Santos. Dos telefones (fixos) estarem sempre ocupados. Reuniões à porta fechada. Sei que alguém foi comprar comida (frangos, batatas fritas, pão e bebidas). Na madrugada de 28 de Setembro fiquei gelada quando vimos um destacamento militar descer pelo Bairro Alto. Afinal era para ocupar o jornal Bandarra que ficava ali perto, não era para nós.
O alívio foi tão grande que fomos festejar para o apartamento em Benfica que tinhas a meias com um amigo. ‘Não tens de ir para casa?’ ‘Não, e tu?’. Já nem escondíamos o nosso caso. Para mim achava normal, com a liberdade do 25 de Abril, assumir às claras andar com um homem casado. Percebi que para ti, com 45 anos, por um lado sentias-te bem por andar com alguém mais novo, mas ficavas atrapalhado por eu, mal saíamos do partido, gostar de andar de mão dada, de te beijar. Estavas habituado a ter amantes, mas às escondidas. Não com 24 anos?
Numa sessão de esclarecimento no Alentejo estavas num canto divertido a ver-me responder: ‘E se tomar a pílula como é que o meu marido não vai saber?’. ‘Toma a pílula desde os 19 anos? E ainda nem casou?!?’. Nessa noite parecias um miúdo contente com um doce proibido: fizemos amor num beliche, vá lá tivemos direito a ficar os dois na cama de baixo…
Um fim de semana estava a trabalhar na Artilharia Um, a minha filha a brincar no chão com a filha do Zé e da Luiza. Na porta o Mário Soares. ‘Vi os estores abertos’. Ficou divertido com as miúdas de 4 anos. ‘Sabem quem sou?’ Eu de olhos muito abertos… ‘És o Marocas, apareces na televisão’. Respirei aliviada, estava à espera de ‘Bochechas’.
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