Entre 72 e 74 fui viver para a Madeira, convidada para trabalhar na empresa da família, de exportação de vimes. Falava bem várias línguas, responsável pelos contactos com os clientes estrangeiros. As notícias do que se passava em Lisboa vieram, primeiro, pelo João Pestana (querido amigo e fotógrafo) e depois com as apaixonadas conversas com o primo Vicente Jorge Silva (ainda no jornal ‘Comércio do Funchal’). Com a alegria do 1º de Maio a gritar ‘Liberdade’ ‘ Fascismo Nunca Mais’ passámos no Palácio de S. Lourenço (onde estavam presos Marcelo Caetano e Américo Tomaz) e tornou-se impossível continuar a viver na ilha. ‘Entendo que queiras ir para Lisboa. Nem penses nisso. Precisas de dinheiro? Fazes muita falta aqui na firma. Que é também tua’.
Aproveitei os feriados de Junho, no fim de semana deixei na empresa a chave do apartamento com uma carta e várias caixas, e na 2ª feira embarcámos só com as malas para Lisboa, logo no 1º avião. Em casa da minha Mãe ‘Pode ficar com a minha filha? Vou tirar uns dias de férias’. Andei fugida da família mais de um mês, de início numa pensão barata e, quando comecei a fazer contas à vida, refugiada no apartamento dum amigo. No fim de semana ia buscá-la para passear, nem subia os 3 andares para evitar dar explicações. Com 4 anos estava habituada a ficar com a Avó de quem gostou muito.
Só me lembrava da professora de História. Cada novo ciclo é precedido por um período de decadência. Na Madeira em 1972 fui confrontada com o que significa realmente ‘miséria’ e ‘diferença de classes’. E injustiça social.
‘Nem pensar: a menina tem de ir atrás’, insistia o chefe de escritório quando me veio buscar para irmos à Camacha conhecer os fabricantes de cestos. Na casa do Sr. Barata, da cozinha as mulheres olhavam com curiosidade. Ao almoço as filhas vieram servir a rir. Admirada, eu via os ossos de frango a voarem da cozinha para o quintal.
‘A menina tem de aceitar’. Com 23 anos só queria chorar ao olhar para o lombo de porco embrulhado num pano bordado dentro dum cesto, junto com bolo de caco e uvas. Uns meses antes tínhamos dado uma encomenda de cestos à mulher dum dos artesãos, o marido estava de novo no sanatório e ela desesperada com 7 filhos. Escolhemos uns cestos pequenos que ela e os filhos pudessem fazer e arranjámos quem lhe fornecesse o vime. Foi um alívio quando consegui encontrar na Venezuela um comprador para aqueles cestinhos todos. Com a matança do porco aquela oferenda. ‘Sr. Vieira, leve para a sua casa’. ‘Menina: ela fez isso com muito carinho, vai ficar muito ofendida’. Nesse sábado fizemos uma grande almoçarada no jardim da firma, com 3 anos a minha filha estava feliz a brincar com os filhos dela.
Parámos o carro. Tinha ido almoçar ao Estreito de Câmara de Lobos com um cliente da África do Sul. Na estrada um homem carregava às costas uma rapariga aí de 13-14 anos. Tinha caído. Iam a pé ao posto de saúde procurar um médico. Voltámos ao Funchal para os levar ao hospital. Perna partida. Regressaram de ambulância.
Em Julho de 74 bem procurava emprego. Em Lisboa nada nos jornais. A agitação política era enorme. O I Governo Provisório tinha durado 2 meses. Com a demissão de Palma Carlos, Spínola nomeou Vasco Gonçalves como 1º Ministro e deu posse a novo Governo, de novo com membros do PPD, PS, MDP/CDE e PCP. Fui a todos os partidos buscar os programas, até ao MRPP! Na Duque de Ávila, a Mª Antónia Catanho de Menezes que me reconheceu da CEUD em 1969: ‘Vai à sede. Estão à procura de pessoas. Fala com o camarada Xis Calheiros’.
Fui a correr para S. Pedro de Alcântara. O ambiente era frenético no edifício, onde hoje é o The Independente Hostel. ‘Queres ser pau para toda a obra? Pagamos pouco.’ Aquele encontro determinou o curso da minha vida até 1990. Pelo caminho muitas histórias.