1970: e nasce a flor do Amor impossível
Inversão de papéis. A vida forçou-me a amadurecer bem rápido.
No final de 1969 estava profundamente desiludida. Contigo. Com a bruta realidade da vida. E, principalmente, comigo. Eras um vício a que voltava. Sabendo do mal que me fazia. O prazer da nossa relação transformou-se em culpa.
O dinheiro que ganhava no estágio na tua agência de publicidade permitia sair à noite com a São Pontes. Com os amigos da nossa idade íamos ao Ad Lib, ao Stone’s. Querias saber com quem saíamos.
Como a Avó passava o inverno na Madeira, eu ficava cada vez mais no seu apartamento perto do Rato – para estudar e até para dormir. Dava a desculpa que ficava na casa da São. Até ameaçaste contar à minha Mãe. Víamos o teu carro na rua. Nem atendíamos o telefone. E insinuaste que as duas andávamos juntas. ‘O que tens a ver com isso?’ Eu estava a ficar mais descarada. Ou menos sonsa?
Andava desesperada a controlar o peso. Ficava furiosa ‘Gosto de ti gordinha, fofinha’. Tinha deixado de fazer ballet dois anos antes, quase na mesma altura que comecei a tomar a pílula. Entrei num círculo vicioso: tomava laxantes, diuréticos e as bebidas alcoólicas ajudavam a deitar para fora o que comia desalmadamente.
Em Janeiro 1970, queria desesperadamente acabar com tudo. Voltei a ir pôr o frasco de Librium na mesa de cabeceira da Mãe.
À distância nem sei como nasceu a ideia. Senti que se engravidasse tu te afastavas. De vez. Com medo do escândalo. Deixei de tomar a pílula. Deixei de ir ao ISLA e guardava o dinheiro da mensalidade. Passava as manhãs a trabalhar na Êxito, os nossos encontros às escondidas continuavam. Depois ficava em casa da Avó até serem horas de fingir que vinha das aulas.
Quando fiz 20 anos a criança que me tinha escolhido para ser mãe enchia-me de esperança. Comia bem, andava bastante.
Grávida de 4 meses contei-te. Queria que te afastasses, ia dizer que era dum amigo. O desgosto quando me entregaste um bilhete de avião para Londres, a morada duma clínica onde ainda podiam fazer o aborto e os contactos da agência de publicidade que tinha tratado de tudo.
Já em Londres telefonei a comunicar a minha mudança de planos. Tinha combinado tudo com a tia Alzira: estava a ficar em casa da Moyra e do Terry, seus amigos. Para a família a tirar um curso de inglês no verão.
Em Julho pediram para acompanhar à Escócia o Zé Ferreira, da Êxito, onde foi operado. Nem uma pergunta sobre a barriga evidente de 6 meses. Na agência o que lhe teriam dito?
Eu andava tão feliz. A liberdade desta 1ª experiência de viver sozinha. De ficar no meio dos hippies em Chelsea, King’s Road, Carnaby Street. Assistir aos concertos ao ar livre em Hyde Park. Em Marble Arch a dona duma sex-shop dava-me uma cadeira e achava imensa graça explicar-me tudo.
Nas aulas de preparação de parto assumia orgulhosa ser mãe solteira. Nem pensava no futuro: só pensava no bebé. Até gostei da dieta rígida e de andar quilómetros em Hampstead para evitar aumentar muito o peso. A obstetra ficou satisfeita quando uma junta médica confirmou ser possível o parto natural, pois o bebé era muito grande. ‘Miguel se for menino e Sophia se for menina’. Ficou emocionada: tinha nascido na cidade de Sófia, na Bulgária.
A 29 de Outubro a Sophia nasceu em St. John’s Wood, perto da famosa Abbey Road dos Beatles. Na véspera ao entrar na clínica várias enfermeiras ficaram encantadas por ser também portuguesa. Como estava com pouca dilatação, tive direito ao melhor jantar daqueles meses: bacalhau assado com batatas a murro e arroz doce. Soube muito bem, até as dores de parto começarem às 2 da manhã…
A família em Lisboa já sabia do nascimento. A Mãe insistiu que voltasse para casa. Foi só o tempo de tirar o passaporte e com 15 dias a Sophia fez a primeira viagem de avião. No aeroporto chamam para ir ao balcão da TAP ‘Mr. and Mrs. Borges’. Para surpresa encontro o Nicolau Borges que tinha vindo a Londres com o Pai para uma cirurgia e regressavam à Madeira. Gargalhada: ‘Pequena, tu és a Mrs.?’. Em plena guerra no Ultramar tinham achado estranho que dois passageiros com o apelido Borges tivessem pedido, em separado, para entrar mais cedo no avião. Vasculharam as nossas bagagens todas. Quase que chorava quando furaram com um canivete as latas de leite em pó infantil que trazia. O Nicolau ‘Deixa comigo!’. Com duas horas de atraso o avião levantou, depois de terem ido comprar o leite fora do aeroporto. Tivemos direito a vir à frente, os aviões ainda tinham 1ª classe. Uns anos depois no Funchal bem nos rimos a contar este incidente: achavam que éramos terroristas e que íamos assaltar o avião? Ou que trazíamos uma bomba?